O homem entrou no boteco. Deu os dez passos rotineiros e parou no balcão. Um rapaz vestindo um avental encardido e enxugando copos, olhou-o com curiosidade. Aquela era a sexta vez que ele aparecia naquela semana. Sentava no mesmo lugar, pedia a mesma coisa e repetia os mesmos movimentos. E o mesmo vazio da voz.
O rapaz se aproximou, colocou um copo na frente do misterioso homem e despejou o líquido transparente e fragrante. Afastou-se e observou discretamente o homem repetir a mesma careta e o mesmo estalido viscoso de sua língua esbranquiçada.
Por semanas o homem apareceu no boteco. Cada vez mais taciturno e desleixado. A barba por fazer, o cabelo desgrenhado e um suor espesso que escorria de suas têmporas. De vez em quando coçava a cabeça ou esticava o bigode salpicado de pêlos ruivos. Ou estalava os dedos, seguindo uma ordem estranha, onde ia do dedo médio para o polegar e intercalava os demais dedos, indo do indicador para o mínimo.
Certo dia entrou como de costume, serviu-se da bebida e começou a olhar fixamente para um cartaz de cerveja já desbotado, que estava pregado em um canto. O rapaz ofereceu mais um trago. O homem apenas levantou a mão, em sinal de recusa.
Enquanto o rapaz virava-se para guardar a garrafa, o homem saiu de seu silêncio e revelou sua voz baixa e rouca.
- Eu sou um nada.
O rapaz parou, surpreso, e sem saber o que dizer, apenas soltou um tímido e espantado “Como?”.
- Você me vê aqui, quase todos os dias e eu sei, eu percebo que você me olha, que eu chamo a sua atenção.
- Me desculpe, senhor. É que...
- Não, não se desculpe. Eu venho aqui com essa cara imunda, com esse cabelo e essa barba nojenta... E nunca digo uma palavra sequer. Mas do que adianta? Que importância isso tem?
- Não queria ter incomodado o senhor. Sinto muito mesmo.
O homem acendeu um cigarro e observou a fumaça que se desmanchava lentamente.
- Não ligo para desculpas, nem para arrependimentos idiotas. Eu sei que você quer saber quem eu sou e por que eu chego aqui assim... Quer saber? – continuou ele, com um certo desprezo – Dane-se tudo. Tudo é uma merda. E eu sou a maior de todas elas...
Silêncio. O rapaz continuava calado, apenas ouvindo.
- O pai se vingou do filho do pai que matou o amor do pai.
Por vários dias o homem não voltou a aparecer. O rapaz sempre olhava para a porta, num misto de curiosidade e medo, esperando ver aquela figura estranha outra vez.
- Sabe aquele homem estranho que aparecia aqui quase todos os dias? – perguntou o dono do bar – Aquele que sentava aqui e nunca dizia nada...
- Sei...
- Prenderam ele hoje de manhã... Acredita que a mulher morreu no parto e ele achou que a culpa foi do filho? Pois... ele matou o próprio filho! O povo quase lincha ele... Pois é... É cada coisa que a gente vê... Esse mundo está perdido mesmo.
- Prenderam ele hoje de manhã... Acredita que a mulher morreu no parto e ele achou que a culpa foi do filho? Pois... ele matou o próprio filho! O povo quase lincha ele... Pois é... É cada coisa que a gente vê... Esse mundo está perdido mesmo.
O dono do bar parou. Ficou alguns segundos em silêncio e depois bateu as mãos.
- Agora chega de conversa! Tem um homem ali, vá atender ele.
O rapaz obedeceu e pôs-se novamente a trabalhar. E a esperar novos personagens...
"- O pai se vingou do filho do pai que matou o amor do pai."
ResponderExcluirImpressionante o que você pode fazer com apenas uma frase!! Adorei! Gostei muito do texto. Li apenas esse no seu blog e resolvi comentá-lo. Depois volto pra ler seus outros trabalhos. Parabéns. Se há um cheiro de bukowski aí, eu não o senti. Apenas vi o talento da autora.